quinta-feira, 13 de fevereiro de 2025

O Encantador de Serpentes



(Republicação)

ElsonMAraujo

Quando a ciência ainda não se impunha com a autoridade dos tempos modernos, problemas simples e, por vezes, complexos eram resolvidos pelo saber ancestral, transmitido de geração em geração. Sobretudo as questões de saúde, que, antes de médicos e fármacos, eram confiadas às mãos sábias das rezadeiras e benzedores. Essas figuras, dotadas de uma aura de mistério e respeito, eram a esperança das mães aflitas e dos pais resignados.

Minha saudosa mãe, Teresa, confiava nesses rituais. E por isso, algumas vezes, me levou a um desses mestres da cura. Lembro-me, em especial, de uma tarde em que fui conduzido a um rezador para "cortar uma íngua" – um caroço dolorido na virilha, seguido de febre. A casa do benzedor era humilde, feita de taipa e coberta com palha de babaçu. No terreiro bem varrido, galinhas ciscavam entre porquinhos que remexiam a terra, enquanto um cajueiro carregado espalhava pelo ar um aroma adocicado. As pipiras, numa algazarra, se fartavam dos frutos maduros. São memórias que, mesmo com o passar dos anos, permanecem intactas.

Minha mãe explicou ao velho benzedor o motivo da visita. Com gestos tranquilos, ele me pediu que retirasse a alpercata e firmasse o pé no chão. Pegou uma faca de cabo de chifre de boi, riscou a terra ao redor do meu pé e, enquanto murmurava palavras indecifráveis, desenhou pequenas cruzes no chão. Feito isso, despediu-se com um aceno e um olhar de quem já sabia o desfecho. E não demorou: dias depois, eu já corria pelos quintais da vizinhança, como se nada tivesse acontecido.

Nesses tempos de escassez de médicos e remédios, a fé era o único refúgio. Rezas, chás, banhos e unguentos formavam o arsenal terapêutico da sabedoria popular. Ainda hoje, há quem preserve essas práticas. Minha cunhada Socorro Oliveira, por exemplo, dedicou-se a estudar essas tradições e, inclusive, apresentou um trabalho acadêmico sobre o tema em uma instituição portuguesa. Ciência e tradição, muitas vezes, caminham juntas.

E o encantador de serpentes, do título? Ah, não me esqueci dele! Eles ainda existem. Fragmentos dessa antiga arte podem ser encontrados em algumas regiões do Maranhão. Conheci um deles no início da pandemia, em São Raimundo das Mangabeiras. A descoberta veio por meio de um sobrinho por afinidade, Diego, o nome dele, que lamentava a perda de uma vaca de leite e três cabras, vítimas das cobras peçonhentas que infestavam a fazenda.

– Vou procurar o encantador – disse ele, com a certeza de quem já testemunhara a eficácia do método.

Na casa do homem, um entra e sai constante. Quando chegamos, ele estava "alinhando a arca" de um vizinho. Com uma camisa velha, media as costas do paciente e explicava, com convicção:

– Tá vendo aqui? Tem uma diferença grande. Vamos ajeitar isso agora!

A "arca caída", também conhecida como espinhela caída ou peito aberto, é uma aflição popularmente diagnosticada por fortes dores na boca do estômago, nas costas e pernas, acompanhadas de cansaço. Para aquele benzedor, a cura vinha da reza – e sem margem para dúvidas.

Mas e as serpentes? Como ele pretendia livrar a fazenda do meu sobrinho delas? Por R$ 300,00, prometeu resolver o problema, mas, dessa vez, sem precisar ir até o local.

– Tenho uma viagem marcada – justificou. – Mas não se preocupe, faço o serviço daqui mesmo!

Naquele primeiro semestre de 2020, tudo era remoto. Até os encantamentos.

Antes de nos despedirmos, contou-me que herdara o ofício do avô e já preparava o filho para seguir seus passos. Gabava-se de que ninguém jamais contestara a eficácia do seu trabalho.

Cinco meses depois, já de volta a Imperatriz, lembrei-me do caso e resolvi perguntar ao sobrinho sobre os resultados.

– Sumiram! – respondeu ele, sem hesitação. – Nunca mais perdi uma vaca.

E assim, São Raimundo das Mangabeiras ganhou seu primeiro encantador de serpentes remoto. Entre a fé e o ceticismo, o importante é que as cobras, de fato, nunca mais voltaram.

 

sábado, 1 de fevereiro de 2025

Pequenos diamantes da alma

 


ElsonMAraújo 

 

 O corpo é a roupa da Consciência.  

A Consciência é a roupa da alma. 

(ElsonMAraújo

 

Sempre gostei de frases. Chegou um tempo em que até as colecionava. Anotava tudo. Antes, naqueles cadernos de capa dura e costura de arame. Depois, no computador. A princípio, frases ou pensamentos bíblicos, fruto da minha formação cristã. Mais tarde, passei a prestar atenção nas frases soltas dos filósofos gregos até chegar aos contemporâneos.

 As frases, ditados, expressões populares, haicais, aforismos — não consigo divisar exceções — encerram grandes ensinamentos. São gotas valiosas de sabedoria expostas, verdadeiros diamantes das almas em momentos de transbordo. Também, parafraseando o poeta Ribamar Silva, da Academia Imperatrizense de Letras, numa de suas definições sobre o que é a poesia, são verdadeiras fraturas expostas da alma.  Mesmo fora do contexto, ensinam.  

 Percebo e ouso dizer que há algo de mágico na forma como um provérbio africano, um verso de Camões ou um haicai japonês podem resumir séculos de observação humana. São como mapas antigos, desenhados por navegadores de diferentes eras, que nos guiam por mares já conhecidos, mas sempre novos. Lembro-me de uma frase de Heráclito lida num livro didático na minha adolescência: Ninguém entra duas vezes no mesmo rio”. Naqueles idos, parecia apenas poesia ou uma simples frase solta.  Hoje, entendo que é um tratado sobre o fluxo da existência, escondido em doze palavras.  

 Os grandes mestres sabem que a brevidade é irmã da profundidade. Um aforismo não se explica; instala-se. Certa vez, li em Lao Tsé: Quem sabe não fala, quem fala não sabe. Fiquei horas ruminando aquilo, como quem mastiga uma semente desconhecida, até extrair seu sabor amargo e doce. Percebi que as frases mais luminosas exigem um pacto: só revelam segredos a quem as contempla em silêncio.  Ruminá-las é preciso!

 Algumas dessas pérolas verbais tornam-se parte de nós. Lembro-me de meu avô materno, Mestre Otávio, homem simples do interior do Maranhão, que repetia: Cão que late não morde, mas assusta o dono. Na época, ria da rusticidade. Anos depois, ao ver como o medo paralisa mais que a ação, compreendi que ele resumira, em uma linha, o poder das ilusões. São essas heranças anônimas, transmitidas de geração em geração, que tecem a trama invisível da sabedoria coletiva.  

 Minha coleção migrou dos cadernos rabiscados para arquivos na nuvem. Algumas se perderam no tempo, mas a essência permanece. Curioso notar como, na era dos algoritmos, ainda buscamos refúgio em fragmentos de eternidade. Um tweet,  um verso de música, um  Post filosófico — tudo pode carregar a centelha de um diamante. Recentemente, encontrei numa rede social: Viver é ajustar a alma à tempestade sem perder o brilho. Não sei o autor, mas reconheço ali o mesmo fôlego dos antigos.  Dizer o muito no pouco. Por aqui tempos grandes especialistas nessa matéria. Alguns, como o já citado Ribamar Silva, Zeca Tocantins e o professor José Geraldo, são membros da gloriosa Academia Imperatrizense de Letras.

 Há uma alquimia peculiar em condensar verdades complexas em poucas sílabas. Nietzsch ,( olha o poeta aqui de novo)  que me foi apresentado pelo confrade Ribamar Silva,  brincava com isso: Deus está morto ecoou como um trovão, mas quantos perceberam que era um lamento, não um triunfo? Já os haicais, o professor José Geraldo é um craque neles, com sua estrutura de 5-7-5 sílabas, ensinam que a limitação é o berço da criação. Talvez por isso, em um mundo saturado de discursos, as frases curtas sejam faróis — não iluminam tudo, mas mostram a direção.  

 No fim, percebo que uma frase, compreenda, aquelas bem nascidas, não são meras palavras, mas sementes de almas. Cada autor, conhecido ou anônimo, deixou um fragmento de seu fogo interno. Como dizia Guimarães Rosa,  olha seu autor preferido aqui, confreira Adriana Moulin-  o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Essas frases são justamente isso: clarões no meio da travessia, pequenos diamantes que, mesmo nas noites mais densas, lembram-nos que a alma humana é uma mina inesgotável de luz.  

 E assim sigo, caderno aberto, olhos atentos, catando no chão da existência as pedras preciosas que outros, em seus transbordos, deixaram cair. Vivos, sejam eles,  para todo sempre!

 

O Encantador de Serpentes

(Republicação) ElsonMAraujo Quando a ciência ainda não se impunha com a autoridade dos tempos modernos, problemas simples e, por vezes...