ElsonMAraujo
As memórias, prefiro as boas,
tornam imortais nossos entes queridos.
Quando menos a gente espera, um cheiro, uma música, uma paisagem, uma
viagem, uma música; pronto, lá vêm o retumbar das memórias, uma atrás da outra,
a nos transportar ao doce jardim das lembranças. Lá, livremente, voltamos a
reviver as vidas encarnadas, principalmente na infância e na
adolescência. Feliz de quem consegue ancorar boas memórias. É que elas, às
vezes, costumam funcionar como um bálsamo para nossas dores.
Carrego boas memórias dos meus
pais, que há muito partiram para o Oriente Eterno. Uma ausência presente, como
diria minha dileta confreira, da Academia Imperatrizense de Letras Liratelma
Alves. Dia desses, ela falava sobre as ausências presentes, e as presenças
ausentes. Achei aquilo fantástico, já que se aplica direitinho na minha
relação com meus pais, ausências sempre presentes.
Há pelo menos duas semanas que
sou visitado pelas memórias da minha adorável mãe, principalmente as vividas na
infância. Éramos, unha e carne. Não fui um menino fácil, mas ela nunca deixou
de me proteger. Por diversas vezes, quando era ora de dormir, antes de adormecer,
a escutava rezando bem baixinho pedindo a Deus que protegesse sempre a mim, e a
meus irmãos. Gostava demais daquilo, e
dormia. Dormia feito um anjo.
Ontem, às 13h55, ainda sem
saber com o que ocupar este espaço, preocupado porque falhei na semana passada
e não querida falhar novamente, minha mãe veio ao meu socorro. Pegou
nas minhas mãos e me transportou aos meus sete anos de idade. É, não
consigo lembrar de coisas havidas há 20 minutos, mas consigo lembrar bem, de muitos fatos da infância. E assim,
aconteceu.
Morávamos numa pequena cidade.
Não havia água encanada, e só os mais abastados tinham poço no quintal, o que
não era nosso caso. Para beber e lavar
louça, era até fácil. A água vinha do poço da casa vizinha. Agora, para lavar roupa,
a coisa complicava. Exigia uma certa logística, que começava um dia antes,
quando minha mãe juntava a roupa suja da semana. Não havia sabão em pó, nem desses bonitinhos
que a gente compra na quitanda. O sabão, quase sempre era de fato de porco e
potassa.
Cuidadosamente minha mãe ia
separando a roupa suja para formar uma imensa trouxa. Feito isso, vinha a parte
da qual mais gostava: o frito de galinha caipira, temperada com alho, sal,
pimenta do reino, e o cheiro verde (cebolinha, coentro) tirado de um canteiro, no
fundo do quintal. Nunca faltou uma
penosa no quintal lá de casa. Depois de
pronta, a iguaria era misturada numa farinha (puba) e posta numa lata, e tampada.
Só seria aberta, ao meio dia, do dia seguinte, no intervalo da lavagem de
roupa. Dormia, pensando no frito.
Não me pergunte como minha
adorável mãe conseguia andar, cerca de um quilômetro, com uma trouxa de roupa
na cabeça, sem nenhuma ameaça de queda, levar debaixo do braço uma lata de
frito, ficar de olho no peralta do Elson Araújo que lhe acompanhava nessa
aventura, e ainda ficar atenta na vereda que conduziria até a beira do brejo, numa
propriedade rural que o dono abria para as donas de casa lavar roupa. Fazia tudo isso e ainda cantava. Confesso,
que naquela idade, só pensava mesmo era no frito da hora do almoço.
Enquanto minha mãe “batia a
roupa”, eu passava o tempo mordendo manga, e chupando caju. Era tanta fartura
que deixava tudo pela metade. Os dentes, ainda de leite, ficavam dormentes, mas
eu nem ligava. Entre uma mordida e outra, o pensamento voava até a lata de
frito.
No pingo do meio dia, começava
a ouvir de longe minha mãe me chamar.
Ela já havia terminado a lavagem e punha a roupa espalhada pelas
ramagens para quarar (procedimento que consiste em deixar as peças ensaboadas
expostas ao sol por um longo período).
A palavra mágica era “ Elsonnnn, vem
almoçarrrr”. Largava tudo e lá ia eu correndo, descalço, sem medo de ferir os
pés ou levar uma queda. Chegava o momento da abertura da lata de frito.
Minha mãe, parecia que sabia
do prazer que tinha de vê-la abrir a lata de frito e subir aquele cheiro,
curtido de um dia para o outro, que só os iniciados são capazes de compreender.
E era assim, ela só abria a lata quando eu chegava.
Com o vestido de chita molhado,
colado ao corpo, minha mãe sentada na tábua de lavar roupa, me chamava para
perto dela, e ali, só eu e ela, debaixo do sol quente, sob o testemunho do
canto do bem-te-vi, das pipiras, do anum, e do barulho da água batendo nas
pedras, ela, ritualisticamente, abria a lata de frito.
Para se juntar àquele saboroso
banquete, um punhado de peixinhos cercava a tábua de lavar roupas para também
se deliciar com punhados de farofa que caiam no brejo a cada mordida nos
pedaços do frito da caipira. E eu, ali, hipnotizado, já pensando na próxima
lavagem de roupa.
Gratidão, querida mãe.
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